Ali, o andarilho leitor, filho de Alá


Ali, o andarilho leitor, filho de Alá

Ele é um homem sem lar, que tem fome, aspirações e que segue Maomé, o profeta.

Por Adriana Brasil

O

 homem velho, franzino e de olhar misterioso anda em passos lentos carregando dois pesados sacos, pendurados pelas abas nos ombros. Costuma ser visto pelas ruas usando na cabeça um capacete amarelo, daqueles utilizados na construção civil. Há anos não apara os cabelos e a longa barba. Assim é Ali, um andarilho vive nas ruas de Natal e Nova Cruz.
Dorme em estacionamentos de clínicas médicas ou em rodoviárias. Nessas cidades, percorre as distâncias a pé. Diariamente segue o trajeto Rodoviária de Natal> Ceasa> Supermercado Carrefour (no Mirassol), gastando, em média, uma hora e meia de caminhada. A pé, vai quase todos os dias ao Atacadão, na BR-101, que liga os municípios de Natal e Parnamirim. Trabalhadores das imediações referem-se a ele como “aquele velho que anda muito”. Veste camiseta, short e chinelos. Passa dias sem tomar banho, nem trocar de roupa mas conserva traços delicados no rosto castigado pelo sol.

Rabiscos sobre o islamismo

Tem olhos castanhos, cansados, nariz afilado e face de maçãs protuberantes. O corpo curvado, franzino. Nunca gostou do seu nome de batismo, Mário Sena. Escolheu Ali por causa da doutrina islâmica, que admira. “Ali é o nome de um primo do profeta Muhammad”, explica. Com uma caneta, ensina como escrever Alá. Soletrando, escreve em um papel a maneira correta:  “Al-ilãh”, na versão primitiva. Alegra-se quando o assunto é Islamismo. Diz que não segue todos os preceitos da religião, mas gostaria de conhecer o local em Natal onde soube que reúnem-se muçulmanos. Descobrir Alá o fez sentir paz e alívio. Recita alguns preceitos de Maomé a título de ensinamento. Tenta descobrir o número de uma caixa postal com quem possa comunicar-se sobre a doutrina e, quem sabe, ganhar livros. Leva consigo duas edições de bolso: uma pequena biografia do profeta Maomé e outra com a história do Islamismo. Leu os dois e fez anotações a caneta em folhas velhas de rascunho. Um dia, quem sabe, conhecerá Meca.


Ali fala polidamente, é cortês e se expressa bem. Alimenta a mente com leituras. Chega a ficar horas do lado de fora de bancas de revistas, parado, em pé, lendo publicações que jornaleiros o emprestaram. São poucos os que fazem isso. E um dos poucos favores que pede é para ler. Aborda educadamente os funcionários das bancas e alguns permitem que ele manuseie algumas revistas e livros que não pode comprar.

Ali dentro do Carrefour

“Não sei quando poderei vir deixar os R$4,90" Mas ele compra, sempre que dá, edições da revista IstoÉ Dinheiro: assuntos relacionados a finanças e empreendedorismo o interessam. Para pagar aquela edição, que custava R$ 14,90, ele não tinha todo o valor. Na banca da qual que é cliente, entregou R$ 10 à balconista, que lhe deu um recibo. Disse, ao se despedir: “Não sei quando poderei vir deixar os R$4,90 que faltam, mas espero que seja logo”. Ele costuma pagar suas revistas e jornais em parcelas. Entre outros títulos preferidos estão os ligados a história, religiões, culturas. Compra também os exemplares de Aventuras na História e Caras- gosta das fotografias e dos brindes que vem nessa revista.
O dinheiro que sustenta a compra de revistas e livros provém da venda dos produtos que compra no “Atacadão” e revende em Nova Cruz: geralmente água sanitária e bolachas.  Gasta, em média, R$50. Despacha o pequeno volume no porta-malas de algum taxista amigo que seguirá a caminho daquela cidade. Orienta-o: “Só toma cuidado para não amassar as bolachas, senão eu não vendo”, explica. Viaja de ônibus para aquela cidade, pagando o valor da meia passagem. Tem 63 anos mas não se beneficia da gratuidade no pagamento do transporte,  pois ele não tem documentos.

“A Mulher Mais Nojenta Do Mundo”. Ele anda muito. E isso o faz sentir-se bem. Abre um sorriso para dizer: “Ora, prezada amiga, andar é como viajar, você conhece vários lugares, pessoas, aprende.” Não tem documentos, apenas a certidão de batismo. Em Nova Cruz, onde costuma andarilhar é possível resgatar um pouco mais da história de vida de Ali. Nessa cidade, ele tem o respeito de velhos conhecidos e algumas inimizades. Entre elas, a da mulher que acusa ter lhe roubado o lar, em 2002.  Já era um andarilho, vendedor de confeitos e agulhas. Segundo ele, uma mulher da cidade, conspirou para tomar-lhe a casa em que morava só e que estava em nome da sua mãe, que vivia com outros parentes. A tal mulher movimentou polícia e pessoas próximas para interná-lo no Hospital psiquiátrico João Machado, em Natal, também conhecido como Hospital da Colônia. A partir daí, Ali nunca mais teria a chave da casa de volta. “Aquela mulher”, diz ele alterado, com o dedo em riste, “a mais nojenta do mundo”, e citava o que se fofocava na cidade: “nascida em berço de cabaré”. Acusa-a de roubar-lhe a escritura da casa, quando conseguiu interná-lo no hospital psiquiátrico, com a ajuda de policiais da cidade.


“Quando cheguei ao Hospital da Colônia Partiu de Nova Cruz para Natal em uma viatura policial em direção ao Hospital João Machado. Ele conta: “Lembro que era onze horas da manhã, horário de verão, quando cheguei ao Hospital da Colônia, numa viatura da polícia. O cabo veio a viagem toda mexendo comigo. Ao entrarmos na recepção do hospital, ele disse a um rapaz: “Ele bate na mãe dele!” O recepcionista olhou para mim por alguns instantes e disse: 'Policial, ele está tão calmo. Não parece que ele bateu na mãe, não” O soldado tirou um papel e mostrou: ' Tá aqui o que o juiz manda! O rapaz leu e fez a minha ficha.”
No atendimento de emergência, Ali foi colocado sentado de frente ao médico:
 “O cabo novamente falou: ‘Doutor, ele bateu na mãe dele’! Eu então ergui o dedo e fiz sinal de negativo: Nada disso! Aí, quando eu fui falar: 'Doutor, eu NUNCA bati em minha mãe, é mentira dele! Eu senti que alguém espetou uma coisa no meu braço, me furando. Eu continuei a falar: ‘Doutor aagagburgh...'  mas a minha língua dobrou, caiu, fui pra frente e meus olhos fecharam. Apaguei. Nem deixaram eu falar. Um médico que nem me conhecia, disse: ‘Você não vai sair daqui nunca, você é um perigoso.’ E fiquei um tempo por lá ainda. Até que recebi a visita de duas pessoas da minha cidade, que conversaram com um médico de lá, o doutor Celestino, que disse: ‘Você não tem nada, não há motivos para permanecer aqui.’ E me deu a alta”.
No período que foi internado sentiu a dignidade esvair-se. Reclama que literalmente chegara vestido, de camisa, calça comprida e sapatos e saíra de lá de bermuda e de pés descalços. “Apanhei muito de toda sorte de drogados, vagabundos que tinha lá. Fui roubado, tomaram de mim o pouco que eu tinha!”
O pouco que possui está contido dentro dos dois grandes sacos que carrega por onde vai. Se refere a eles como “as bagagens”. É imprescindível andar com elas. Um cuidado para que o passado não se repita: já guardou suas coleções de revistas e livros dentro de caixas de papelão ou isopor, lacradas. Pediu a conhecidos que guardassem em suas casas. Um dia voltaria para buscá-las ou revê-las. Ao retornar, descobriu que os objetos foram jogados no lixo. “Não queria mais lixo por aqui!”, diziam. “Faltava espaço e aquilo era coisa velha, não prestava!” Ali reagiu com revolta. Reclamou os seus direitos de proprietário. Mas recebeu em troca um portão fechado na cara pela indiferença.

Some quando cai dentro de mim.” O homem alimenta-se apenas de água, pão e frutas. Não gosta de pedir esmolas, nem comida. Dói ouvir xingamentos e acusações: “Drogado!”, “Vai gastar é com bebida!”. O comportamento reservado, sem vícios, andando pelos mesmos lugares, carregando seus sacos pesados, inspira a solidariedade de alguns. Todos os dias, recebe quatro pães de uma padaria. Um comerciante do Ceasa dá bananas. São esses alimentos que come ao longo do dia e guarda para outras necessidades. Ele diz: “Criatura, a fome é tanta que o pão que eu como, some quando cai dentro de mim.” É a fome o cerne da sua vida. Atormentado por fraquezas, tonturas, dores pelo corpo, acredita que não viverá tanto quando sua mãe, que morreu aos 93 anos. Costuma desmaiar na rua. Tem cicatrizes dessas quedas, nos braços e nos joelhos.

 No supermercado Carrefour recebe atenção de alguns funcionários que frequentemente lhe reservam um lanche, com bolo e refrigerante, que ele come em uma mesinha na praça de alimentação do supermercado. “E como está a mão, sarou?” pergunta a atendente dentro do supermercado. Ali havia tropeçado e caído, recentemente.

“Só viajará após o jornal de Dilma sair”. Faz algumas semanas que Ali planejava ir para a cidade de Nova Cruz. Adiou a viagem em função da compra de um exemplar do jornal Folha de Pernambuco, a edição que sairia em 21 de Maio, que compraria na rodoviária. É que nessa edição ele espera ler a cobertura da visita da presidente Dilma Rousseff, que viria inaugurar um estádio para a Copa do Mundo no estado de Pernambuco.  Decidiu que só viajaria após comprar o seu exemplar, para não correr risco de perdê-lo. E assim foi feito. Admirador de Dilma, do partido PT, conta que só não votou nela por não ter documentos. Fala com carinho de Fernando Mineiro, Fátima Bezerra e Lucena - políticos do Rio Grande do Norte.


 “Não fico em lugar por onde anda bandido” A noite cairá daqui a pouco e Ali vai dormir daqui a algumas horas, quando chegar com sua inseparável bagagem na rodoviária. O local dessa noite é distante, mas ele prefere não correr riscos. Dormia no estacionamento de uma clínica pediátrica e recentemente soube que um fugitivo de um presídio estaria perambulando pelas imediações. Chegou a ver o tal sujeito empurrando um carrinho de mão próximo ao ponto. E ele não fica em lugar por onde bandido anda. A dormida é sobre um pedaço de papelão, onde crê que seja local seguro. Ele tem um lençol curto que ou lhe cobre os pés ou lhe cobre a cabeça.

Quando Ali está quieto, parado ou andando pelas ruas, pensa na fome que sente e na vida que tem agora. O passado é um tempo doloroso. A história de sua vida contém hiatos. Mantém laços de respeito e cordialidade recíproca com as pessoas do presente da vida - os conhecidos que ajudam, os que saúdam, os que não torcem o nariz quando passam ao seu lado.

Diz que não espera muito da vida. Em alguns momentos ri muito, ao falar do presente e do que gosta de fazer. São raros sorrisos e é especialmente agradável vê-los brotar do rosto de um homem atormentado por tristezas e restrições.  As andanças e descobertas que surgem na vida de Ali alimentam sua alegria: o sorriso é aberto, os olhos castanhos enchem-se de brilho e ele ainda se emociona.




Relato da repórter

Uma vida sublime e de privações


Já o tinha visto no supermercado Carrefour, próximo ao Natal Shopping. Me chamava a atenção o capacete de construção civil, a longa barba... Quem seria aquele homem? Ele parecia muito reservado, sentado, sozinho, em uma mesa distante na praça de alimentação.  Quando surgiu a proposta do perfil, pensei nele. Andei algumas vezes pelo supermercado, a procurá-lo. Um dia o vi em pé, parado. Pedi licença, apresentei-me, perguntei o seu nome e fiz a proposta de escrever a história que ele quisesse me contar. Ele riu. Eu disse que seria bom para nós dois: eu gostava de escrever e escreveria uma história que ele me contasse. Seriam coisas da vida dele. E ele iria gostar também, pois poderia falar o que quisesse e ao fim teria um perfil sobre si. A essa altura ele já tinha me contado que gostava de ler. “O que o senhor acha, seu Ali?” Pediu que sentássemos, pois o joelho não estava muito bom. Começou a falar de si. Me sensibilizei com o que parecia mágoa: quando jogavam fora as caixas de objetos que ele pedia o favor que guardassem. Pedaços da vida dele, que não tem onde deixar em segurança. Confiou em poucas pessoas que trataram suas coisas como velharias e as jogaram fora. Não tem familiares próximos, conhecidos. O jeito é andar com dois sacos grandes pendurados nos ombros. Sacos que pesam e que sobrecarregam as costas e os joelhos de homem de 63 anos. Esse esforço é para não perder o pouco que ainda tem.
Falava dos livros guardados com carinho em caixas de isopor, na casa de conhecidos, na cidade de Nova Cruz. Ao chegar para rever as coleções, tinham ido para o lixo por ocupar espaço. O descuido originou algumas inimizades.
Me comove até agora outro fato: no último dia da nossa entrevista, numa noite de domingo, estávamos no Carrefour.  Desliguei o gravador do celular e disse: “Pronto, seu Ali. A gravação acaba aqui. Agora vamos comprar algo para o senhor jantar?” Pensei que ele iria se levantar prontamente, pois nessa entrevista citou que não tinha jantado, só comido um pão no almoço e já eram mais de 20h:30. A entrevista havia se prolongado. Fiquei surpresa quando ele disse: “Peraí” e foi lentamente tirando um encarte de supermercado de dentro de um dos sacos. “Você não quer comprar algo pra você, moça?” E mostrou um encarte de produtos de beleza das Lojas Americanas. Olhei o encarte por alguns minutos, achando que  estava arrumando a bolsa. Quando eu devolvia um encarte, ele me mostrava outro. Eu disse: “Seu Ali, vamos jantar? Sei que o senhor está com fome.” Mas ele parecia não me ouvir. Eu fiquei sem entender. Fui tomada pela impaciência e um sentimento de culpa imediato. Seu Ali não quis comida. Foi só no dia seguinte, ao refletir, que me dei conta de que ele não queria que aquele momento terminasse. A fome sempre presente podia esperar. E eu não percebi que a ele estavam fazendo muito bem aqueles momentos, sentado em frente a alguém que o escutava e fazia sentir-se importante. Tão importante que ele nem ligava de comer. Isso me marcou e emocionou.
 Nos encontramos mais uma vez no Carrefour. Ele jantava um prato de sopa que tinha ganhado. Riu ao me ver, pediu que fizesse fotos dele comendo. Aquilo era um evento importante para por no perfil. Ele estava alegre. Eu disse que estava quase terminando perfil e tinha algumas incertezas para confirmar. Ao repetir algumas perguntas que já tinha feito, seu Ali demonstrou um pouco de impaciência. “criatura” e “prezada amiga” são as formas que ele se refere a mim quando faço as perguntas.  Mas também me chama pelo nome, Adriana, quando estamos sem gravar. Tiramos fotos com câmera fotográfica nesse dia. Ele gostou da sessão que fizemos. Achou bela a foto que abre esse perfil.
Esse foi um trabalho de grande responsabilidade. Gosto de ler perfis, mas como é difícil escrevê-los! Começar dá um trabalhão. Mas depois você se vê “apaixonado” pela  história e a insegurança diminui. Deseja que aquilo que ouviu, que alguém te contou, “exista” aí começa a escrever e sentir um pouco daquilo tudo na alma. É um exercício de sensibilidade e emoção.

Comentários

  1. Bela matéria, Adriana. A foto de abertura é magnífica. Sou fascinada por andarilhos. No meu blog fizemos (somos quatro autores) uma entrevista com um, o Seu Juca "Sem Fio". Se tiver tempo, dê uma lida. Eis o link:
    http://tucazamagna.blogspot.com.br/2010/03/seu-juca-sem-fio-um-andarilho.html

    Beijos

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  2. Obrigada pelo elogio, Anga! Esse perfil foi um dos trabalhos que mais gostei de fazer. Foi muito especial o contato com Ali. Ele me ajudou bastante! Ele é um homem sério e um tanto impaciente. E foi muito gentil com essa repórter iniciante, rsrsrs!

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  3. Reportagem bacana.Nunca ouvi falar deste homem aqui em Natal,rsrs.A partir de agora, vou acompanhar as postagens desta jornalista em seu blog.

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    1. Obrigada, Antonio! Fico feliz que tenha gostado! Abraços!!

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