UMA
NOITE NO PLANTÃO DE POLÍCIA
Por Adriana Brasil
Pistola apreendida na Delegacia de Plantão da Zona Sul, em Natal-RN (Foto: Adriana Brasil) |
No ponto de ônibus, em frente ao shopping Via
Direta, a expectativa era grande. Demorava no local, já passava das 21h e nada
do ônibus 31 passar. Fiquei sabendo pelos outros passageiros que também
aguardavam que era normal. Depois de uma ansiosa espera, chega o transporte.
O motorista indicou o local em que eu desceria
e para que lado eu deveria seguir. Caminhei alguns minutos e avistei uma
aglomeração, o piscar das luzes azuis e vermelhas de uma viatura.
Havia chegado ao meu destino.
A primeira impressão era de que ali fora um dia
uma residência. Um muro, portão estreito, jardim, varanda... Era um pouco
mais de 22h e havia várias pessoas por lá. Andei um pouco lá
dentro para me adaptar ao ambiente. O caminho no portão de entrada dava acesso
à varanda cujos nove assentos estavam ocupados por pessoas. Havia gente em pé,
distribuída por todos os lugares. Quem chega por ali é examinado com
curiosidade pelos olhares de todos.
A delegacia fica repleta de xeretas nos
momentos de pico. Eles estão lá para saber da vida alheia: quem matou quem, ver
briga de marido e mulher. Criticar, julgar pessoas, discutir os problemas de segurança nos
bairros, cidades e no mundo.
Um grupo de quatro jovens integrantes de um
blog de notícias, chamado Rede Aventura, com idades entre dezesseis e vinte e
quatro anos, organizava-se para filmar uma matéria dentro do plantão. Uma
ligação para o celular de um deles os fez mudar de ideia: o registro de um
homicídio do outro lado da cidade os chamava.
- De qual veículo você é?- pergunta um policial
civil que me vê com a câmera em mãos. Respondo que sou estudante de
jornalismo e falo sobre o meu propósito naquela noite. Ele aconselha que eu não
grave imagens de policiais civis. Recomenda-me filmar os policiais militares.
Explica que são questões de segurança: “os militares estão nas ruas, em
confronto direto enquanto os civis são responsáveis pelas investigações.” E
disse também que a exposição de imagens poderia atrapalhar o desempenho da
atividade, pois o anonimato deles é muitas vezes necessário para as
investigações. Eles não usam farda, como os militares. Alguns vestem camiseta preta, com o logotipo da polícia civil.
Acato a sugestão. Desisto do vídeo e peço uma
entrevista. Recebo o convite para entrar e conhecer a delegacia. Mas gravar, só
imagens externas, do portão afora. “Os militares têm boas histórias para te
contar”, disse o policial que me disse apenas o primeiro nome e mesmo assim,
pediu que não fosse publicado. Entramos.
Ele seguia na frente, falando alto, com gestos
largos e indicava as funcionalidades da delegacia: “Aqui é como o Walfredo
Gurgel (hospital público do estado)- atende ocorrências de toda a grande Natal.
Da ponte de Igapó pra cá, além dos municípios de Parnamirim, Macaíba, São José
de Mipibu e parte de Monte Alegre”.
Passamos pela sala de espera, um local pequeno,
com aproximadamente 4x5m². Os assentos estavam todos ocupados. As janelas
possuem remendos com fita adesiva. Adiante, a sala de triagem é um pouco maior,
lá há dois policiais atendendo as ocorrências em dois computadores. Poucas
cadeiras para espera, uma televisão ligada no noticiário, em baixo volume e
gente em pé, aguardando. A coisa empacava ali, indicava o policial. “Apenas
dois computadores! O nosso sistema prisional está falido. Às vezes falta até
água, imagine!”
Pergunto quais são as ocorrências mais comuns.
“Lei Maria da Penha! Mas olha só o que costuma acontecer: a mulher é agredida
pelo companheiro, liga para a polícia e chegam aqui os dois. Dizemos: ‘Seu
esposo ficará preso’. Ela é a primeira a se preocupar em quere tirá-lo daqui ou
pagar a fiança. Diz que queria que apenas um aconselhamento. Nesses casos eu
mando ir procurar um padre. Oras, tira das ruas uma viatura que está fazendo
patrulhamento. A vítima acaba fazendo com que o trabalho do policial seja uma
brincadeira. A delegacia faz o inquérito, movimenta o poder público.
Ele abre uma porta e mostra um corredor
estreito com duas portas. A primeira é a do cartório, a outra é onde são
guardados velharias. Ao fim do corredor há o acesso para a sala onde são
realizados os interrogatórios, reconhecimento de acusados por vítimas e onde prisões
e solturas são decretadas. Na saleta, um policial que falava a um senhor
carrancudo acompanhado de duas mulheres. O policial civil que eu acompanhava,
sempre falando em voz alta mostrou-me sobre o birô duas pistolas que foram apreendidas
naquela noite. Houve uma denúncia de que dois rapazes escondiam armas e drogas
dentro de casa, embaixo da cama. A polícia militar foi ao encalço e eles
tentaram fugir a cavalo, sendo perseguidos e capturados. Foi a primeira vez que
toquei em uma arma de fogo, passei os dedos. “Quer ver onde ficam os presos?”
Ele vai até uma porta de ferro escura que está dentro dessa mesma sala. A única
porta de ferro que por lá eu vi. Alta e estreita, ela é destrancada diante de
mim.
Ele a empurra e o que eu vejo é um local de despejo de gente. Homens deitados no chão, algemados pelo pulso em um torno que está preso ao chão. Deitados sobre o cimento sujo e úmido. Alguns nos olham, indiferentes, outros dormem. Próximo à porta um jovem que acabara de despertar assusta-se ao nos ver: “Não tira foto! Não tira!” Ao contrário dos demais, era um rapaz de pele clara e estava bem vestido. Ele tapou o rosto com as mãos e o policial respondeu: “Ela vai tirar, sim! Bora, moça, tire! Pode tirar! Era o meu primeiro contato real com o submundo que eu várias vezes vi na televisão e na ficção. Estava diante de uma cela aberta. Os homens estavam todos descalços, alguns deitados ou recostados na parede. Meu olhar com o de alguns se encontraram. O odor de suor e urina era forte. Ali não havia banheiro. Para urinar, usava-se garrafas plásticas. Defecar era no chão ou na própria roupa- essa era a opção ou infortúnio de alguns. Havia lodo e sujeira no chão e paredes. A ventilação era quase nula, exceto por uma pequena janela de madeira, com uma veneziana, que dava acesso ao quartinho de despejos que eu tinha visto anteriormente. “Vai tirar foto?” - pergunta o policial. Então falei para o rapaz que só iria fotografá-los do peito para baixo. Tirei uma foto só, para ser o mais breve possível e inclinei-me para mostrar a imagem. Ele ergue-se um pouco do chão para ver, faz sinal de positivo com os dedos e diz obrigado. Deita-se e ri, acho que por causa da própria reação quando nos viu. Foi o único retrato que tirei da cela.
Diferente de ver na televisão ou em fotos um calabouço como aquele, poder estar lá é marcante.
Ele a empurra e o que eu vejo é um local de despejo de gente. Homens deitados no chão, algemados pelo pulso em um torno que está preso ao chão. Deitados sobre o cimento sujo e úmido. Alguns nos olham, indiferentes, outros dormem. Próximo à porta um jovem que acabara de despertar assusta-se ao nos ver: “Não tira foto! Não tira!” Ao contrário dos demais, era um rapaz de pele clara e estava bem vestido. Ele tapou o rosto com as mãos e o policial respondeu: “Ela vai tirar, sim! Bora, moça, tire! Pode tirar! Era o meu primeiro contato real com o submundo que eu várias vezes vi na televisão e na ficção. Estava diante de uma cela aberta. Os homens estavam todos descalços, alguns deitados ou recostados na parede. Meu olhar com o de alguns se encontraram. O odor de suor e urina era forte. Ali não havia banheiro. Para urinar, usava-se garrafas plásticas. Defecar era no chão ou na própria roupa- essa era a opção ou infortúnio de alguns. Havia lodo e sujeira no chão e paredes. A ventilação era quase nula, exceto por uma pequena janela de madeira, com uma veneziana, que dava acesso ao quartinho de despejos que eu tinha visto anteriormente. “Vai tirar foto?” - pergunta o policial. Então falei para o rapaz que só iria fotografá-los do peito para baixo. Tirei uma foto só, para ser o mais breve possível e inclinei-me para mostrar a imagem. Ele ergue-se um pouco do chão para ver, faz sinal de positivo com os dedos e diz obrigado. Deita-se e ri, acho que por causa da própria reação quando nos viu. Foi o único retrato que tirei da cela.
Diferente de ver na televisão ou em fotos um calabouço como aquele, poder estar lá é marcante.
2-Detentos são algemados
ao chão, em péssimas condições. (Foto: Adriana Brasil)
O
policial fechou a porta apenas com um ferrolho pelo lado de fora, que poderia
ser aberto por qualquer um que ali entrar. A infraestrutura do lugar é
precária. Não há como oferecer suporte adequado para o cidadão. Vítimas e acusados podem passar maus bocados
dentro dessa instituição. O policial me conta que alguns preços batiam a cabeça
na parede ou tentavam soltar-se das algemas de aço, deixando a pele em carne
viva. “Mas das algemas de silicone é possível escapar- e fugir daqui com facilidade”.
Por lá não há grades, as janelas são de madeira e vidro e dentro do lugar em
que ficam os detidos, já uma janelinha de cerca de oitenta centímetros de
diâmetro pela qual já fugiram vários presos. Uma policial me mostra depois, que
essa janelinha interliga a cela com o quarto de despejos do corredor estreito,
e frente à janela diz, cochichando “para eles não nos ouvirem”, que por ali já
fugiram vários presos. “Eles arrebentam a janela e entram por aqui, depois
espiam pelo corredor e cartório se há alguém, caso não eles pulam a janela do
cartório e fogem”, diz.
O policial que me apresenta a delegacia voltou
comigo para a varanda, despediu-se e foi conversar com alguns colegas do lado
de fora. Voltei para a antessala e fiquei próxima daqueles que aguardavam o
atendimento. Chama atenção a moça que está em pé, isolada, abraçada a uma pasta,
com o corpo voltado para uma porta que não dará acesso a lugar algum. Olha
fixamente para um ponto invisível dentro da parede. Está vestida com uma calça
jeans manchada de branco e uma camiseta cor amarelo pálido. Os cabelos estão
pesos em um rabo de cavalo baixo. Ana Célia Canela, de 28 anos sente tristeza e
vergonha dentro da delegacia. Não sabia o que iria acontecer ainda naquele fim
de noite. Naquele momento, esperava a triagem e tentaria resgatar o marido, que
há poucas horas fora detido por dirigir perigosamente, alcoolizado. Em baixa
velocidade, ele ziguezagueava o carro no trânsito. Ana Célia estava ao seu lado
e tinha apenas um medo: bater de frente a um ônibus ou caminhão. Pedia para o
marido parar, ameaçava descer, mas era em vão. A mesma história já se repetira
outras vezes. Pois quando saiam do trabalho nas sexta-feira, o marido costumava
beber antes de irem pra casa. “O meu trabalho é com vidro. Eu faço arte com
vidro!”, falou encarando-me pela primeira vez. Conta que sentiu grande alívio
ao serem detidos. “Os policiais foram legais com a gente. Para mim foram como
pais”, disse.
Não era meia-noite ainda quando na varanda,
duas mulheres risonhas e bem arrumadas eram o centro das atenções. Maquiadas,
com roupas de festa, curtas e sandálias de salto falavam alto e riam. O pai de
uma delas, auditor fiscal, foi preso por embriaguez e agressão. Era o idoso que
eu tinha visto momentos antes, com duas mulheres sendo interrogado. “Ia a uma
festa, mas papai aprontou e viemos pra cá” falou, rindo. “Viemos animar essa
delegacia!”. Encostado no muro, do lado de fora, um membro da família fez
questão de não entrar. Ele era irmão do agressor, tinha mais de sessenta anos,
e lamentava-se: “Família bem de vida. Eu estou arrasado, envergonhado, triste!
Pra idade que ele tem, pela função que ele tem... Desrespeitou, agrediu policiais!
Tanto tempo sem vê-lo. Eu só vim porque a minha esposa é advogada”. E completa:
“Setenta anos é idade para ter muita vergonha na cara e respeito consigo e com
a própria família”.
Já passa das primeiras horas da manhã e a
delegacia está vazia e iluminada. Passa por mim uma cansada Ana Célia, de
cabeça baixa, em passos firmes, segurando com um braço e empurrando com
dificuldade e marido que ainda cambaleava à sua frente, sem camisa e de pés
descalços. Era um dos que eu vi, preso ao chão.
Apenas policiais civis lá estão às duas da
manhã. A tranquilidade impera e espera-se a chegada de viaturas da PM ou telefonemas.
Na varanda, converso com um grupo deles. Falam sobre as ocorrências rotineiras:
homicídios, agressões, estupros, brigas de vizinhos. Há também casos pitorescos,
que causam estresse dentro do plantão. “Ligam para reclamar de gatinho que mia
demais, de um buraco misterioso que apareceu dentro de um quintal.”
Lá enfrenta-se dificuldades para a realização
de procedimentos básicos e necessários como o reconhecimento das vítimas. “O
correto seria a vítima ver o acusado em uma sala separada. Aqui, isso não é
possível. Muitas vítimas traumatizadas e não querem ficar frente a frente com o
acusado, na mesma sala. Nesses casos, fotografamos o acusado com o celular para
a vítima reconhecer. Mas isso acaba sendo ineficaz diante de um bom advogado,
que consegue facilmente derrubar esse procedimento na justiça”. E assim, um
criminoso obtém a liberdade.
Um microônibus da Acadepol estaciona em frente
à Delegacia, quebrando a monotonia daquela madrugada. Entram três policiais
civis que traziam oito detentos de presídios de Mossoró-RN para Natal para
transferir para presídios de Natal. Naquela hora, as únicas delegacias em
funcionamento eram os plantões da zona Norte e Sul. O delegado surge na
entrada, era a primeira vez que o via desde que ali eu estava. Ele põe-se a discutir
por telefone com autoridades em Mossoró. A superlotação é o motivo do envio
desses detentos. Ao fim, fica acordado a transferência de três deles para
aquela delegacia e o restante, que incluía duas mulheres, foram levados para a
delegacia da zona norte.
Cinco horas da manhã, um homicídio é comunicado
à delegacia. Vejo sair o delegado, o escrivão e mais um policial. Minutos
antes, a PM descarregara de uma pick-up um homem detido por arrombamento junto
com os produtos do roubo: botijão de gás, aparelho de som e bicicleta.
Às seis da manhã e com sono, senti-me segura
para ir embora. A experiência daquele dia foi vivenciar realidades de vida.
Acho que irei me tornar mais sensível à medida que sair para viver o real. Senti
um pouco do medo, das tristezas, do nojo e também do pesar de muitos daqueles.
De histórias que eu ouvi naquela noite. Valeu muito a pena. Aprendi e ganhei
muito.
Todo policial civil é a paisana pois devido a sua função de investigar não usa farda como a PM
ResponderEliminarPecimas condisoes para os seres homanos sem água e sem comida 22 homens deitado no chão em cima de fezes e urina suor isso não pode mesmo eles sendo quem são !
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